Esse é um exercício de falar do que se desenha. Primeiro, rabisco os primeiros pilares enquanto penso na solidez das instituições que nunca alcancei.
Hoje, todas elas estão capturadas numa grande teia fascista de interpretações e revisionismos.
As segregações foram encaradas como uma realidade dada. Mergulhados como em um mar de leite não enxergam a luz do real que os conduza a um destino.
Pelas escadarias do conhecimento, seus degraus acolhem a juventude que ainda mantém a contramola que resiste à beira de um precipício cada vez mais aberto ao grande público, seguram as flores nos dentes de uma primavera que ainda não insurgiu.
Com o tecido social que continua a fisgar suas presas, cujas mãos ainda permanecem dadas. Estes desenhos continuam sem cores e falo como se não pudesse falar.
Rua Itariri.
Em meio à cortina de fumaça cada vez mais densa, o mofo e o reboco começam a ruir dos antigos quartos de um quintal velho na cidade, aprisionando ainda mais o futuro já sem projeção da mulher que ali habita.
Com as árvores cada vez mais sem galhos espalhadas pela cidade, ela beira os cinquenta e cinco anos. Ela é contornada por marcas de expressão que contêm memórias profundas: da infância naquele mesmo quintal, da flauta tocada junto aos hippies nos anos de chumbo, das histórias súbitas de amor e das condições que fizeram que seu corpo hoje não pode ser a sua própria morada.
De vez em quando, ela alonga o pescoço e olha-se ao espelho com olhos ainda jovens, encarando a condição de sua pele e seus fios brancos. É a representação de uma massa inteira que vibrou, trabalhou e envelheceu, mas agora é demais para continuar lutando por um mundo que não soa mais nas notas que tocará um dia.
Por isso, ela volta a dormir.
Praia da feiticeira.
Embora o erro do meu pincel tenha desenhado a superfície plana da terra e calculado o algoritmo que a cerca, o curso do jogo competitivo e igual em oportunidades cessou por um instante para dar lugar ao espetáculo da natureza.
Arrastando de toda a orla da praia, barraca, lazer e coqueiro. Poderia ter revelado enfim o ouro enterrado pelo mito da feiticeira… mas o estupidamente real não possuiu tantas aventuras assim.
Depois da instabilidade, a garota que trabalhava como garçonete naquela temporada e liderou a corrida com êxito até a mansão mais próxima, sentou-se na beira da praia, em meio ao estrago causado pelo vendaval no arquipélago.
Todos se consolaram em orações e gratidão, e logo seguiram para verificar seus pertences pessoais. Enquanto isso, a garota continuava suspirando em contemplação… o vento uivava. Com fúria. De nós.
Praça do coreto.
Para a personagem que amarra apenas três botões da blusa pesada, faltam pulsos que cheguem em definitivo ao coração. O pedaço de pena atrelado ao boné, barba enrijecida e cenho primordialmente impetuoso em busca de aventura.
Faz hoje, mais ou menos, quatro anos que não recorre ao chafariz da praça do coreto, para andar sem razões nobres pelos seus contornos e respirar a neblina das três da manhã.
Seu esboço é uma ode à aventura e à embriaguez que passou, e que talvez tenha se perdido nas transições entre os intervalos. Ao passo que vão se alongando na percepção dos dias comuns.
Trânsito no trevo.
Esse sentimento amedronta as minhas personagens que se lançam aos pneus que rasgam os corredores de ônibus, na aleatoriedade do aro, entulho e fumaça de uma cidade que não funciona.
Com a porta sanfonada desenhada, eu consigo separar o barulho das buzinas do vazio dos pensamentos de uma senhora que beira os cinquenta e cinco anos.
Assim, espero que um colapso gere um silêncio mútuo pela madrugada, do qual eu possa escrever.
As luzes dos abajures amarelos são acessas ao retorno do trabalho sempre às oito. As notícias em podcast são reproduzidas sempre em trinta minutos antes da janta, de tal forma que o celular fique de escanteio para concentrar-se no freela extra, que com certeza não há energia para ser entregue.
Com a falsa sensação de controle através de prazos, espera-se estar no comando da situação. A sensação de ser testado naturalmente aos quarenta e cinco minutos de um segundo tempo todos os dias.
Dançar juntinho.
Dançamos. Qualquer coisa que esteja tocando, é um intervalo para o desespero ou para a nossa diversão.
De mãos dadas, é o sinal mais corajoso entre dois homens. Entrelaçadas simbolizamos a luta gigante em nossas vidas cotidianas. Seja para nossa segurança ou para afirmar nosso afeto é também onde controlamos o ritmo da dança. Alguém lidera ou revezamos.
Nesse ritmo as preocupações, frustrações de classe, fragilidades e inseguranças desaparecem. Danço tanto num forró improvisado como para desviar-me dos cobertores no varal, dos ataques e sinais vindos do céu ou do olhares das pessoas ao redor.
E o amor sobrevive nisso:
Euforia
Euforia
Eu faria
Tudo por você. ❤️
Desgoverno.
Um carro vem a milhão! Passando a boiada entre os barrancos mergulha na água da represa, onde jovens buscavam se divertir na água lamacenta. Não havia pessoas dentro do automóvel e, gradualmente, a faixa presidencial começava a boiar na direção deles.
A garota de cachos dourados estava sentada à margem da represa, ao som de um new wave meio enfadonho, algo como The Cure. Observava a farra feita com o tecido escrito ordem e progresso e desejava que nenhum deles fosse sugado por um daqueles canos escondidos na água.
Pensava em sua casa, assim como nos acontecimentos que levaram à sua independência feminina. O tempo passava calmamente e um vento cortou seus cachos…
Poderia ser o mesmo vento da outra folha de papel, afinal, como se sabe, com a terra plana as coisas podem estar mais próximas.
Mobilização.
Naquela partida de vídeo-game, a princípio, as coisas no quarto do garoto de dreads pareciam as mesmas.
Havia a mesma sensação de alienação do mundo exterior, com suas situações financeiras penduradas, o saldo do cheque especial de cada um, o modo como dormem, comem e quais móveis e tralhas conseguem trocar ao longo do ano. Tinha sempre um jogo novo para me mostrar e encontrava uma maneira de estar sempre presente na minha vida.
Naquele quarto onde uma garrafa inteira de José Cuervo foi consumida há seis anos, dava para ouvir o barulho da chuva enchendo a calçada com poças. As mesmas poças que mergulhara a cara bêbado.
Às vezes passo por ela e no seu reflexo, eu ainda lembro… logo após passo dando pulinhos para não sujar o sapato e a camisa social. O banho de realidade material nos pegou pela surdina.
As gotas acertavam o cômodo alugado no quintal. Era chamado de a casa das máquinas e servia de uma oficina de costura para pequenos reparos. As memórias daquela bagunça toda assemelhasse a estar em uma capela.
Há seis anos, resguardou as nossas memórias, nossas camisetas de banda e grande parte do desespero que tínhamos com o nosso futuro.
É provável que compartilhávamos naquele instante, a memória do som daquelas gargalhadas ecoando na noite chuvosa? Entre sons de pancadaria e efeitos mágicos dos personagens na televisão.
Quartinho.
Fui bater à porta do quarto alugado no mesmo quintal, onde morava o garoto das bochechas rosadas. O loiro rechonchudo. Sim! O mesmo que estava na água da represa e brincava com a faixa presidencial. Também o mesmo rosto no canto inferior esquerdo da página. Não podemos enumerar a quantidade de vezes que esta personagem foi rascunhado em papel.
Me cativa a transição de trejeitos entre os gêneros, bem como, a habilidade de nunca perder o estilo nas ruas daquele bairro em que ninguém liga para você.
Coisas que aprendermos a admirar nos amigos, a coragem. Partindo de um lugar onde gênero e a normatividade das coisas são intrínsecas e quase imutáveis.
Espera! Antes de terminar, só para ilustrar, está ai um aquário onde deveriam conter doze peixes. Não há nenhum!
Sofri de amor. Tiraram de mim a força de manter no imaginário o símbolo das coisas. Cada peixe era atribuído um ano de vida nessa cidade, nesse momento é um aquário limpo e sem peixes. Eles fugiram. Todos!
Recuperá-los tem sido uma das coisas mais difíceis com a minha cabeça e o país do jeito que está.