Dia extraviado

Conto de fragmentos escritos em bloco de nota de celular e um tabuleiro desenhado para todos os dias de novembro e dezembro de 2011.

Penso, logo emigro para um lugar que eu existo. Pensava na frase enquanto seus olhos estavam fixados na garrafa de café. Deixava correr cinco minutos de atrasado no relógio. Com propósito.

Atravessou com pisadas fortes como se quisesse anunciar sua saída a todos no quintal que nem era a sua casa. Um bom dia de trabalho (era tudo que haviam desejado).

Caminhava remansado pelo corredor do quintal largo e invejava os gatos tomando sol. Também respeitava o sol, e se ele ardia daquele jeito isso queria dizer que eram necessários mais dez minutos de dedicação total a ele. Sentou-se no primeiro degrau da escada junto ao portão. Um cachorro olhava curioso do outro lado.

Ao decidir sair virou-se à avenida no sentido inverso do destino correto. Tinha até certa calma nos passos quando percebeu que já quase cruzava ela por inteira. Encontrou estranhamente algumas flores no tímido e coagido jardim da calçada do museu dos transportes públicos. Sentou-se no parapeito com a mochila no colo como se esperasse que alguém se sentasse ao seu lado.

Lembrava que quando criança, sua irmã o levava ali em dias sem muito o que fazer. Burlavam todas as correntes de proibido ultrapassar para se sentarem naquelas coisas enferrujadas. Mal sabiam quanto tempo de vida teriam que passar num modelo mais moderno daqueles no futuro.

Uma brisa leve atravessou as folhas suspensas, e uma lhe recolheu da memória tocando-lhe a nuca. Fez encher seu peito daquele ar da tarde e sentiu que havia vida em si mesmo.

De repente, sentia o arrepiar natural da pele, a palpitação no peito e o suor a umedecer sua testa. Com uma nitidez absoluta. Levantou-se meio saltitante, como uma criança de ensino fundamental com a mochila larga.

Na rodoviária, aquela de volta e não de dia, viu um senhor com deficiência visual parado na multidão como se quisesse perguntar algo. Será que vê tudo como mergulhado num leite como escreveu Saramago? Antes de formular tal pergunta já estava em sua direção para ajudá-lo. Queria saber o lado certo para ir para Guarulhos.

Ao atravessar o farol sentiu que queria levar aquele moço à metafísica e sentiu-se cínico. Perguntar coisas como qual era imaginação que tinha com os sons e qual era a forma de todo aquele murmurinho apressado de gente? Se tinha interesse menos ou mais interesse nos humanos. Uma revelação: o senhor que mascava goma na escuridão e assombrou Clarice.

O senhor então tomou a lotação afirmando ser mais rápida de chegar e alguém lhe deu o lugar para sentar-se. Iria voltar para a casa e nunca mais retornaria àquela estação com as minhas respostas.

Uma hora de atraso e decidiu tomar juízo e retornar à rotina. Estava indo bem na sua primeira oportunidade de se tornar um desenhista de animações do Studio Ghibli vendendo cartão de crédito por telefone.

Quase próximo à avenida do museu novamente, encontrou um boteco de uma senhora baixinha e numa segunda tentativa de caminhar: hesitou.

Pediu água. Parecia a dona, segura de si e simpática no seu avental. Nesse interim do pedido sua vó veio lhe arrebatar através do olhar detrás das lentes grossas dos óculos.

No entregar do copo amortecia o efusivo daquele seu coração. Perguntou-o se mais queria, depois de agradecer findou numa porta aos fundos do boteco – como um de nada.

Era a primeira de incontáveis passagens por ali a observar aquela simpática figura, que sentiu coragem de pedir-lhe água. Lavado o estômago subia agora um choro tardio.

Duas horas de atraso. Sem chances. No estalar da porta anunciou sua chegada mais cedo em casa do que o devido.

A mãe, dentro da sala escura, iluminada a face robusta pelo reflexo da novela da tarde na televisão maneou a cabeça com a chegada. Entre a visão dela se contrapunha no corredor iluminado a sombra daquela presença de mochila nas costas.

Tirou a roupa ainda pesada e foi correndo subir as escadas em direção à laje com os shorts do time de vôlei que nem jogava mais, e encontrou ali o sol. Ah, sozinho! Naquele azul.

Esticou-se no chão de concreto e o lugar que mais gostava no mundo era ali e agora. O sol parecia orgulhoso por ser observado. Vultoso.

Permita olhá-lo sem incomodar aos olhos e com isso abria e fechava sem parar; no lugar de escuridão ou leite tudo era como aquele cantinho queimado da fotografia mal relevada.

E depois vinham aquelas bolinhas brilhantes que os raios de luz deixam ao cruzar os nossos cílios molhados, parecendo pavões engraçados.

Imaginou roteiros mal-acabados, riu da bobagem dos personagens, da cidade inanimada que ficou pela viagem de uma hora. Sem trânsito.

Com monstros e seres a destruir tudo. Refletiu e cochilou no chão com a roupa agora cinza de reboco.

No despertar, o céu já havia feito uma bela bagunça com as nuvens que chegaram. Como o vaivém de um bando de pássaros, a molecada fazia a sua gritaria no entardecer da rua. Esperou assim que o sol se recolhesse para se despedir de algo em si.

O cheiro, esse que nunca mais senti, de que quando se é criança lhe diz que não é para estar na rua e é hora de voltar para casa.